sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O soldado saúda o artista!


Durante as filmagens de "Sympathy for the Devil" (1968), Jean-Luc Godard cumprimenta Bill Wyman enquanto Mick Jagger afina o violão



O Pai da "Nouvelle Vague", a revolucionária onda que há meio século mudou o cinema por uma proposta crítica e comprometida, o cineasta Jean-Luc Godard completa hoje 80 anos, ligado a uma visão particular do cinema e da vida.

Para quem conhecia o cinema engajado e humanista de Mario Monicelli, parecia impossível que um dia o diretor de Os Eternos Desconhecidos, Os Companheiros e O Incrível Exército de Brancaleone fosse se matar. Da mesma forma, Jean-Luc Godard, ao surgir, virou a própria personificação da nouvelle vague. A nova onda foi uma reação aos velhos que dominavam o cinema.

Quem poderia imaginar o jovem Godard chegando à ‘melhor’ idade? Pois as duas coisas ocorreram, e na mesma semana. A semana comercial começou na segunda com Monicelli jogando-se do quinto andar do hospital em que estava internado. Chega a sexta-feira, com o aniversário de Godard, que hoje completa 80 anos.

Feliz aniversário, M. Godard! Para assinalar a data, a distribuidora Imovision coloca nas telas o novo Godard, que integrou a programação do Festival de Cannes, em maio e do Festival do Rio em outubro. Film Socialisme não é apenas o melhor Godard dos últimos tempos - a verdadeira surpresa é constatar que Godard, aos 80 anos, e Manoel de Oliveira, aos 102, que completa este mês, são os que continuam inventando o cinema de busca, o cinema autoral.

Citar (relacionando) os dois autores faz sentido porque Film Socialisme se passa durante um cruzeiro marítimo que também é uma viagem por centros formadores da cultura e do cinema universais. Não há como não se lembrar de outro cruzeiro, o que Oliveira empreendeu em Um Filme Falado. Ambos, por sinal, Godard e Oliveira, com todas as diferenças que os caracterizam, acreditam no verbo.

Godard prescinde de história, de personagens. É até meio difícil dizer do que, afinal, trata Film Socialisme. Digamos que, como todo Godard, é, acima de tudo, uma reflexão sobre o cinema.

Mas não só sobre o cinema. Godard articula três movimentos para discutir a Europa do século 21. Em Coisas Como, durante uma viagem pelo Mediterrâneo, passageiros e tripulantes conversam em suas línguas (Oliveira já havia feito isso antes). Em Nossa Liberdade, um casal de irmãos exorta os pais para que lhes expliquem o significado de palavras (temas) como liberdade, igualdade e fraternidade. Em Nossas Humanidades, o autor revisita seis lugares fundadores de mitos, falsos ou verdadeiros - Egito, Grécia, Palestina, Barcelona, Nápoles e Odessa. Como o fio condutor é tênue, cabe aos espectador articular esses movimentos, retirando deles seus significados profundos. Duas constatações se impõem, talvez três.

Virulento. O filme é fluido, não evolui por rupturas. Um Godard mais sereno, sem deixar de ser virulento, como de hábito. Termina muito bem, e essa talvez seja a constatação mais impressionante. Godard projeta o espectador - cinéfilo - numa espécie de euforia, nos 15 ou 20 minutos finais. E ele continua singularmente crítico. Quer saber o que é o capitalismo, segundo Godard? Ele diz, no seu filme socialista, mesmo que indiretamente - "O dinheiro foi inventado para que os homens não precisem se olhar nos olhos." Hollywood? "É irônico que o lugar fundado por judeus seja chamado de Meca do cinema."

Poucos meses depois que seu último filme, "Film Socialisme", chegou às telas de alguns países, o cineasta franco-suíço não se esquivou das polêmicas. Para comemorar a data, o filme estreia hoje (3 de dezembro) no Brasil.

Acusado de "antissemita" nos Estados Unidos, Godard se negou no mês passado a receber o Oscar oferecido por Hollywood pelo conjunto de sua carreira, "magoado" porque a imprensa americana reprovou sua postura "muito pró-palestina".
Chamado de pai da "Nouvelle Vague", o autor de "Acossado", considerado o filme fundador dessa corrente trangressora, abriu as portas para uma nova maneira de fazer cinema.
Um pouco da biografia ilumina o gênio. 


Filho de uma família franco-suíça, perfeitamente burguesa - pai, médico, mãe pertencente a uma linhagem de banqueiros (como Walter Salles e João Moreira Salles no Brasil). Godard nasceu em Paris durante a 2ª Guerra Mundial. O jovem Godard roubava do avô materno para pagar seus pequenos vícios juvenis, informa Antoine De Baecque em sua biografia, não autorizada mas não interditada, que saiu este ano.
Foi educado na França, e embora reverenciasse a alta cultura, não era exatamente estudioso - abandonou os estudos de etnologia na Sorbonne, mas sem dúvida o curso teve alguma relevância na obra. sucesso que "Acossado" teve entre o público e a crítica em 1959, sua narrativa diferente, com constantes mudanças de direção, foram o tiro de saída para uma geração que estava ansiosa para revolucionar os modelos da época.

"O que eu queria era partir de uma história convencional e refazer, de forma diferente, todo o cinema que já havia sido feito"

François Truffaut, Éric Rohmer e Claude Chabrol moldaram a corrente para transformá-la em um fenômeno que ultrapassou fronteiras e se instalou de forma duradoura e que segue inspirando cineastas tão diferentes, como David Lynch, Pedro Almodóvar, Quentin Tarantino, Gus van Sant e Mathieu Amalric.
Jean-Michel Frodon, autor de História do Cinema francês, da Nouvelle Vague aos Nossos Dias, afirmou que nos anos 50 reinava "um extraordinário amor pelos filmes e um espírito de rebelião contra a impressão de conformismo do cinema francês".

Ainda no início da década de 1960, avaliando o fato de os jovens da nouvelle vague fazerem filmes centrados no próprio umbigo, Godard disse -

"A honestidade da nova onda consiste em só falar do que sabe, para não falar mal do que não sabe, o que poderia comprometer o que sabemos."

 E   em uma entrevista para Cahiers du Cinéma, ele fez sua autocrítica -

"Um filme sobre operários? Adoraria fazer, mas não domino o assunto."

Muitos diretores, os chamados autores, dizem que filmam para descobrir o que não sabem. Francis Ford Coppola, na quarta-feira, em São Paulo, disse que o roteiro é sempre uma pergunta que ele tenta responder fazendo o filme. Godard não tem outras curiosidades. 
Godard nunca se esquivou do papel de líder, de cabeça visível dos jovens que queriam mudar o estilo da época. No turbulento mês de maio de 1968, enquanto os estudantes marchavam nas ruas de Paris, Godard liderou o movimento que levou o protesto contra o sistema ao Festival de Cannes.
Com este festival, o diretor viveu uma história de amor e ódio. Apesar de suas seis indicações, nunca ganhou uma Palma de Ouro. Este ano, depois de anunciado seu retorno ao La Croisette para apresentar "Film Socialisme", o diretor cancelou sua participação no último minuto, vítima de um misterioso "mal grego".

"Com o Festival irei até a morte, mas não darei um passo mais" disse o cineasta em uma carta, alimentando os rumores sobre seu estado de saúde. No entanto, para alguns, não foi mais que um desprezo ao tapete vermelho, ao "glamour" que Godard sempre combateu em sua vida e em seus filmes.

Godard foi um diretor comprometido com uma certa ideia política, uma esquerda tão particular como sua obra. "A Chinesa" e "Week-end à Francesa" são exemplos de sua particular visão da luta do proletariado.

Nos anos 1970 viajou pelo mundo, seguiu brigando com o sistema, rodou filmes que se negou a estrear, como "One American Movie" e "British Sonunds", e começou a experimentar o vídeo.
Voltou-se para um cinema mais comercial nos anos 1980, onde se reencontrou com atores de renome, mas sem nunca renunciar à polêmica. E, depois de um período, retornou ao cinema experimental no final do século passado, com obras como "Elogio do Amor".

Quentin Tarantino homenageou o diretor batizando sua produtora de "Bande à Part". Tão alheio à polêmica que provoca como ao entusiasmo que gera, Godard segue na crista da "Nova Onda" que ajudou a criar.
Jean-Luc Godard, adquiriu a nacionalidade suíça aos 21 anos, afirma que decidiu instalar-se na cidade de Rolle há 30 anos com sua companheira Anne-Marie Miéville, porque é um lugar "qualquer".

De acordo com Frodon, "as pessoas de lá o deixam tranquilo".
- Ele tem seus hábitos, passeia com o cachorro, vai ao café na rua principal, compra seu jornal, seus cigarros. É alguém muito simples.
Godard finge se esconder, mas na realidade nunca parou de trabalhar e sua obra reaparece com frequência no primeiro plano do cinema mundial.

São 80 anos de vida e mais de 50 como diretor. Anarquista de direita, virou radical de esquerda. Revolucionou o cinema. Até Hollywood reconhece. Ele está sendo homenageado com um Oscar de carreira. Como iria recebê-lo numa cerimônia fechada, não na grande festa de março, não compareceu. Está certo. Não teria a mesma graça.

Além do mais, Godard é um nome grande, tem um rosto impactante como um logotipo, como o de Che Guevara.  Se Che tivesse sobrevivido ele seria tão herói? Acho que não. Se Acossado tivesse ganho o Oscar, Godard seria tão transgressor? Acho que não. 

Como em "Tempos de Guerra" eu diria que essa foi a saudação do soldado para o artista.

Um comentário:

  1. confesso que assisti apenas um filme do godard, o Je Vous salue, Marie. O cara tem uma narrativa bem dificil! mas com tantas informações que vc pos no blog acabou que me dei vontade de explorar mais os filmes dele!

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